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O pianista


Eram memórias muito claras... eu o sentia no piano. Aquela sala vazia, a Balade No. 1 de Chopin. Eu estava na janela olhando pra rua. A fumaça ia se misturando. Cada nota, cada tecla. Ele tocava sempre como se fosse a primeira e a última vez. Olhava e não podia chegar perto. Um sonho em que não se pode tocar nada. Sente-se. Vez em quanto eu olhava. As costas e a mão indo e vindo em um bocado de oitavas. Correndo em um bocado de oitavas. E de repente alegre. De repente triste, violento, calmo e às vezes nada. O que podia não ser, o que podia ter sido. Os velhos e confusos pensamentos e eu sem poder chegar perto, a música cada vez mais rápida, cheia de uma expressão rompante e magnífica. Cada tecla. Eu acordava sem pensar no que era vivo mas na vida que tinha. No sentimento que tinha. Natural. Sentir é natural. Sentir tão longe. Tanto tempo. O tempo nem é tempo. Eu mentia o tempo pra poder chegar mais perto. O sonho ia se desfazendo com o tempo, a fumaça, e uma coisa sem nenhuma dor, só um pouco. O que podia ser. Um tempo tão triste que podia ser. E tão triste que foi. Um sol enorme lá fora e eu sonhando na janela. Cada tecla um tempo. Cada dois tempos e eu me perdia de novo. Como se pudesse tocar. Queria chegar perto. Ouvir mais de perto, sem me perder desta vez. Sem perder nada. Não deixar ir.
Cada nota que ele tocava era em mim e cada tempo era meu. Dancei na sala vazia, olhos fechados e uma sensação de ser música. O seu rosto não me sorria. Olhava apenas. Olhava ás vezes. Eu não podia falar. Nem tocar. Ele estava ali e muito distante. Acho que também não podia falar. E não nos falamos, não nos tocamos. Fomos tocados. Quando se é tocado pelo tempo as coisas desaparecem. Não há o que falar. A cada tecla um tempo, cada tempo uma nota, dança-se num compasso, noutro, depois... sente-se, dói-se. Depois, adormece.

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