O Digníssimo “João”
Aqueles lábios carnudos. Eu sem saber o que dizer.
- E então, como você está?
- Acho muita gentileza sua perguntar... não sei se convém responder.
Não havia nada pra responder, eu não sabia como eu estava. Eu não sabia quem eu era, algumas coisas pegam a gente pelo pé e tudo começa a ruir. As paredes da minha casa estavam pintadas agora e o ambiente parecia alegre fora o dono mórbido ali dentro.
- Tudo bem, eu entendi que você não quer responder. Eu só passei pegar minhas coisas.
- Leve-as... são suas mesmo.
- Você não vai mudar nunca não é?
- É, Tristan o bravio será sempre o mesmo.
- Então acho que você sabe porque eu estou indo embora.
Acendi o cigarro mais gostoso da minha vida. Eu sabia, não entendia mas sabia. Preferia que ela fosse, afinal de contas nem morava aqui.
- Você nunca ficou de verdade, não tem como ir embora de verdade, ta indo embora de mim, não da minha casa. Da minha casa só eu posso ir embora.
- Não vou tentar mudar o seu pensamento.
- Nem poderia.
- Nem indo embora pra sempre?
- Nem.
Nem ficando, nem indo, nem voltando. Nem nada, as pessoas se fazem descartáveis porque querem. As coisas são completamente diferentes do que a gente vê nas novelas (pra quem vê novelas).
- Tristan, se você quiser que eu fique é só falar, sabe? Eu queria, mas você....
- “Mas você...” eu já ouvi essa coisa de “mas você...” muitas vezes e confesso que dói uns dias e depois é mais nada, as coisas viram pó, eu não sou dramático, você quem ta indo. Eu é que vou ficar aqui, sozinho, mais um pouco, dividindo minhas coisas comigo, conversando com o espelho, inventando minhas histórias e acreditando que algo vai acontecer. Mas você não está inclusa em nada disso.
Ela começou a chorar e eu não queria drama. Eu odeio drama, eu escrevo pra não precisar viver nenhum drama. Escreve-se pra quem precisa de um drama.
- Hei! O negócio é o seguinte! Essa porra desse livro é meu, ninguém tira esse livro daqui!
- Como seu, o livro da capa amarela é meu!
- Olha, você não é, não foi nem nunca será o tipo de pessoa que lê o digníssimo João Guimarães Rosa, então por obséquio Marina, deixa o João aí! O tal do teu livro de capa amarela é aquela edição horrorosa de sei lá quem que eu nunca li e não quero nem saber de quem é, sei que não é nenhum dos meus fiéis companheiros de madrugada! Ah, e por obséquio, não esqueça nenhum Harry Potter aqui, seria humilhante se alguém aparecesse e visse essa coisa na minha estante! E aquele cdzinho também, aliás acho que você tardou em sair, só agora eu comecei a me dar conta da involução cultural que estava querendo dominar minha casa.
- O que? Você é muito petulante Tristan! E além do mais você me disse que ia emprestar o seu precioso “João”.
- Pois eu devia estar bêbado, o digníssimo João não é para plebeus literários como você. Você nem entenderia, se eu ás vezes leio mais de uma vez pra entender você passaria pelo menos três vidas só no prefácio.
- Eu vou levar sim.
- Nem fo-den-do! E esse nem fodendo é muito claro, nem fodendo mesmo! A não ser que você fique e leia. Depois você pode ir embora e dizer por ai que levou algo de bom dessa coisa toda que a gente teve.
- Essa RE-LA-ÇÃO!!!
Eu não entendo bem essa coisa de relação, sei lá, tem amigos, tem família, mas e as loucas? Onde ficam essas loucas da vida da gente? Eu ponho tudo numa caixa e acho que eu tive amizade com algumas, sexo com outras e com a Marina não era uma relação, nem bem amizade, nem bem sexo. Não era nada definido e por isso eu me incomodava dela ir embora de mim. Só não me incomodava com os malditos Harry Potter, o cdzinho do The Donnas e as malditas calcinhas que ela deixava molhadas sobre as minhas cuecas molhadas. A única pessoa com direito a porquisse na minha casa era eu.
- Não tem relação nenhuma aqui minha filha. A coisa toda é que a gente se da bem, sai junto, dorme junto ás vezes e você não é compatível com os meus pensamentos.
- Tristan, você não é uma pessoa muito clara. E além de tudo você ta mais sujo que pau de galinheiro comigo, você me chamou de burra, ignorante e nega a nossa relação!
- Eu não falei nada disso, você que veio com a história da relação e eu não vou discutir sobre o seu maldito mau gosto. Agora, se você pudesse se retirar e levar as evidências do seu mau gosto daqui, eu agradeceria.
- Mas e o “João”?
- Eu não vou emprestar, ou você lê aqui ou morre na ignorância.
- Ta. Mas depois eu vou embora.
- Sei. Você viu que eu pintei as paredes?
- Huhum, ficaram legais, bem alegres, amarelas, rodapés roxos, só você que não combina com elas.
- Mas combinam com você... cê não acha?
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