Pular para o conteúdo principal
Naquela noite Tristan, o triste, estava boquiaberto. Seu semblante sério, e dolorido... Senhor Deus dos desgraçados! Doía ver aquela aquele rosto triste!
 - O que te abate belo Tristan?
- Não sei o que dizer...
 Entendi que era não só sério, porém de alta gravidade. Aquele sujeito, que tanto fala, e tanta coisa (a maioria sem sentido para os comuns), calava-se agora numa tristeza incomum, até para ele.
- O que houve?
- É terrível...
- Caceta homem! Achei que não defecaria pela boca tão cedo novamente!
Não fui assertiva no comentário... Eu era um cavalo, sem tato, sem jeito... Às vezes (raras vezes) me vinha à mente a palavra certa, mas quando as dizia sentia que essa tal história de palavras certas é sempre relativa. A tristeza incomum dele tornou-se algo maior, mais dolorido frente a minha chacota, e o que antes considerei grave, como é grave para uma criança perder numa brincadeira tola... Era de fato o que parecia, uma grave e profunda dor.
- Desculpe Tristan... Eu... Você sabe não?
- Foda-se você e seus cascos toscos! Vá embora daqui!
Eu fui embora, não sou o tipo de pessoa que permanece ou tenta qualquer forma de diplomacia atrapalhada. Percebi algo estranho no doce lar de meu distinto amigo... Algo que lá nunca estivera. Aí eu percebi o choque que o assolara, e que não chegava nem perto do que julguei friamente como tristeza. Meu distinto, belo e bunda quadrada (devido a anos de leitura) amigo comprará uma TV. Sim! Uma merda de uma TV! Voltei a sua casa determinada! Para bem de Tristan usaria meus cascos não para magoá-lo, mas para quebrar aquela maldita caixa fina de mentiras deslavadas e comerciais estúpidos!
- Abra seu puto! Vou quebrar sua casa, sua TV e depois sua cara!
Ele abriu a porta, os olhos cheios d'água. Desculpei-me ele me disse que não precisava me desculpar... Mas que aceitaria de bom grado.
- O que houve com você meu amigo? Por que fez isso? Eu sempre esperei de você muitas coisas insensatas, discursos malucos, livros estranhos... Mas... Uma TV?!
- Querida, disseram que eu era um desinformado, e que estava perdendo grandes acontecimentos, belos filmes, a sétima arte... Queria saber como era ter essa parafernália de cristal líquido, ou seja lá o que for. Falaram-me também de jogos, diversão e disseram que minha caverna já não era suficiente. Sim, houve certa resistência, mas começaram a discursar sobre o porquê de ter uma TV, justifiquei a desnecessidade porque tenho um computador, e internet...
E novamente eu via meu caríssimo Tristan com os olhos cheios d'água, como se lembrar de algo lhe doesse. - Mas o que você viu homem? Não é possível que tenha visto algo inédito, não existe isso na TV!
- Sente-se comigo aqui... E veja com seus próprios olhos a miséria humana.
Nós vimos tudo que já sabíamos existir, mas tudo se mostrou mais voraz, terrível, estúpido. Vimos um filme triste, que contava a luta de dois homens para conseguir para um povo terras que já eram deles, e que agora serão inundadas. Colocamos num jornal, covardia de todas as formas, espancamento, estupro, homicídios. No mesmo noticiário também vimos homens bem vestidos mentindo e vendendo mentiras pobres aos pobres de mente. Noticiaram sobre crianças atropeladas por ônibus, crianças chorando sobre os corpos dos pais, pais debruçados sobre os corpos de seus filhos, tiroteios. Hospitais cheios de doentes e vazios de leitos, mais mentiras de homens bem vestidos. As mulheres da TV, todas padronizadas. Entre um e outro quadro a repórter ensaia um sorriso dopado para fingir interesse no texto que lê e anuncia com êxito! Noticiavam também escândalos políticos como se nesse país, só o fato dos políticos ganharem os salários e auxílios que ganham não fossem escândalo o suficiente. Novamente o sorriso da repórter para falar sobre cultura... Confesso ter ficado esperançosa, mas então, ela citou algo denominado de "funk ostentação" - pessoas cantando e esbanjando ilusão e artefatos inúteis... Consumindo inutilidades para aliviar o vazio das suas mentes. Na sequência haveria escolas tomadas pela falta de educação, uma moça atacada por outra, sendo esfaqueada em público e as pessoas ao redor assistindo... Uma mulher arrastada por um carro de polícia, pedaços do corpo de alguém espalhados pela cidade (como se a charada fosse a morte e não a vida)... Enfim, vimos tudo que não é humano, tomamos um banho de descultura, com umas pitadas de consumismo induzido na hora dos comerciais... Vimos tudo que não acreditávamos ver num só dia. Foi assim que também fiquei boquiaberta e por fim entendi o que chocara o pobre Tristan. Constatamos finalmente (entre um chororô e outro) que o valor da vida não supera o valor dado as suas tragédias. Tivemos uma longa conversa...
- Minha cara, se um dia você me perguntar sobre o progresso, espere sempre que eu lhe responda que sou contra.
- Também sou contra esse progresso.
- Bem vindos nós ao progresso da miséria humana! Dói ver o que fazem conosco, será que as pessoas não sentem mais dor?
- Sentem sim, mas convivem com ela como uma velha amiga do progresso da miséria... Sentem dor como você quando se sentou aí na frente e começou a ser mais um telespectador da miséria, para que, assisti-la, fizesse com que você se sentisse distante dela, e aí, ela entra, e devora o coração dos bons, conforta-se no alcova dos maus e corre galopante a mando dos poderosos.
- Vamos quebrar essa merda!
- Tristan, venda essa bosta pra algum maluco!
- Não sou assim tão capitalista, já destruí meu dia com essa porcaria e não serei responsável pela destruição de outrem.
- Ah Belo Tristan! Já estão todos destruídos. Não esqueça que você me convidou para o ritual da miséria humana com você...
- Mas você viu tudo aquilo? Eu sabia que a humanidade estava perdida, mas...
 Ele gargalhou. Eu vi voltar sua acidez tristânica aos poucos, mas ainda estava amargurado.
- Eu vi, e há muito mais espetáculo na miséria humana... Basta você manter essa porcaria aí, sei lá, é fácil.
- Não vou fazer parte minha cara, venha, tenho um martelo em algum lugar por aqui.
- Deixe-me perguntar... Quanto pagou nisso? Nesse desastre?
- Nada que o prazer de um martelo desfigurando o desfigurado não possa pagar.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

- Então é isso? - Como assim? - Assim ora! Você simplesmente vai embora? - É. Vou. - Não vai nem me fazer nenhuma promessa? De que volta, ou que eu sou o que você sempre sonhou e tal? - Não. Veja, eu preciso ir, não é nada pessoal, mas tenho muito o que resolver. - Do quê? - O quê? - Tem que resolver? - O de sempre, trabalho, casa, filhos, enfim, o de sempre. - Hum... Entendo - Não entende não, e nem se esforce. Até. Ela partiu sem fazer nenhuma promessa.

Eu e Buckowski

Quase que passei absorto pela livraria, mas entrei. O meu preciosíssimo estava lá! “Bukowski”. Entrei, perguntei o preço. Independente de quanto fosse eu só tinha 0,20 centavos. Livros são caros. Mas o do meu amado Buckowski não era tão fora dos meus olhares. A atendente disse que eu podia sentar numas cadeiras, ao lado do café, e ler o livro. Sentei e li, e ri, concordei, coloquei a mão na boca (sabe como?), e quis quebrar coisas, quis ser um desgraçado, foder, tomar uma cerveja, um cigarro, ri de novo...E fiquei satisfeito o dia todo. O dia todinho! No dia seguinte tomei um porre sozinho, risonho e satisfeito, e não consegui escrever.

O Bêbado e as Pernas

Errara a mira. Limpou seu vômito na porcelana. A bebida que outrora o fez alegre e manso agora fazia mal e o enjoava. Tomado pelo atordoamento pensou em por o dedo na goela e se desalmar por um breve instante. Quisera a alma fugir daquele corpo sôfrego e bêbado. Os pés e as pernas respingados da alma saída e mal mirada lhe envergonhavam. Mas que tinha a maldita sociedade com isso? Perguntas sem respostas coesas eram seu forte. Os fortes agüentariam até o amanhecer. Mas e ele que não era forte? No seu mundo ciranda, caído na cama pensava nas calças vomitadas jogadas na lavanderia, em quantas palavras a menos poderia usar se achasse as palavras certas e nas moças com pernas exuberantes pelas quais passara um pouco antes de se desalmar. Mas que era ele? Perdedor até pra beber? Até assim, pra isso seria fraco? Tinha algo nos seus pensamentos que o preenchiam. Nem seus vícios mais cretinos arcavam com o ardor do sentimento pulsando nas veias e querendo ser sentido, explorado. No fim das con